Legalização das Drogas

Editorial da revista inglesa The Economist, publicado em 26 de Julho de 2001

A primeira coisa que deve ser dita sobre a legalização das drogas é que ela levaria a um aumento no seu uso e, portanto a um aumento no número de dependentes. Alguns argumentam que as leis anti-drogas não têm nenhum impacto, porque as drogas são facilmente encontradas. Não é verdade: drogas são caras – um quilo de heroína é vendido, nos Estados Unidos, pelo mesmo preço de um Rolls-Royce – em parte porque seu preço reflete os riscos envolvidos na sua distribuição e venda. É muito mais difícil e arriscado conseguir uma dose de cocaína do que comprar uma garrafa de uísque. Removamos essas dificuldades, tornando as drogas acessíveis e muito mais baratas, e mais pessoas vão experimentá-las.

Um aumento no consumo de drogas inevitavelmente significará que mais pessoas se tornarão dependentes – inevitavelmente, porque drogas oferecem uma experiência prazerosa que as pessoas procuram repetir. No caso da maioria das drogas, essa dependência pode ser nada mais que um desejo intenso, afetando talvez uma em cada três pessoas. Mesmo um desejo intenso pode ser debilitante. Pessoas viciadas em jogo e bebida prejudicam seriamente suas vidas e as de seus familiares. Além disso, as drogas afetam o organismo de forma permanente, e algumas delas, consumidas de forma errada, podem matar. Isso é verdade tanto para as drogas “pesadas”, quanto para o que a maioria das pessoas considera como drogas “leves”: heroína demais pode deflagrar uma forte reação adversa no organismo, mas o mesmo pode ocorrer com o ecstasy. Isso também pode acontecer com cachaça ou aspirina, é verdade: mas a maioria dos cidadãos questiona se seria certo aumentar a lista de substâncias maléficas que podem ser legalmente consumidas.

Lembrando Mill e a Moralidade

A proposta de legalização das drogas tem como base dois argumentos: um de princípios, outro de ordem prática. O argumento de princípios foi estabelecido, há um século e meio, pelo filósofo liberal inglês John Stuart Mill. Ele diz que o Estado não tem nenhum direito de intervir para impedir o individuo de fazer algo que lhe faça mal, se nenhum mal é feito ao resto da sociedade. “Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano”, proclamou Mill. Este é um ponto de vista adotado, até certo ponto, por quase todos os governos democráticos. Eles permitem que o cidadão se envolva em todo tipo de atividades perigosas, desde praticar alpinismo até fumar ou andar de bicicleta pelas ruas de grandes cidades. Essas atividades apavoram as mães e as seguradoras, mas são, muito propriamente, toleradas pelo Estado.

É verdade que Mill argumentou também que alguns grupos sociais, especialmente crianças, precisam de proteção adicional. Alguns argumentam que usuários de drogas são uma classe especial: uma vez viciados, ele não conseguem mais fazer escolhas racionais, decidir entre continuar ou não a fazer mal a si mesmos. Mas os viciados são uma minoria entre os usuários de drogas. Além disso, a sociedade rejeita esse argumento no caso do álcool, e também da nicotina (cujo poder de viciar é maior que o da heroína). O ponto aqui é que os governos devem investir adequadamente em educação e informação.

O argumento prático para uma abordagem liberal em relação às drogas baseia-se nos malefícios causados por sua proibição, e nos benefícios que resultariam de sua legalização. Atualmente, os malefícios caem desproporcionalmente sobre os países pobres, e sobre os cidadãos pobres dos países ricos. Nos países produtores, e naqueles que servem de passagem, o tráfico de drogas financia quadrilhas poderosas que ameaçam o Estado e corrompem as instituições políticas. A Colômbia é o exemplo mais famoso, mas o México também luta contra as ameaças à sua polícia e à honestidade dos políticos. Os esforços para eliminar plantações de drogas envenenam a terra e as pessoas. O dinheiro do tráfico suporta regimes sórdidos em Myanmar e Afeganistão. E a produção de drogas encoraja seu consumo local, o que, no caso da heroína, colabora para a disseminação da AIDS.

Nos países ricos, são os pobres que têm a maior probabilidade se envolver com o tráfico de drogas, e, portanto, acabar na cadeia. Em nenhum lugar isso é mais vergonhosamente verdadeiro que nos Estados Unidos, onde aproximadamente um em cada quatro presos foi condenado por um delito (quase sempre não-violento) relacionado a drogas. Além disso, embora brancos consumam drogas tão livremente quanto negros ou hispânicos, os dois últimos grupos compõe a maioria dos que são presos e condenados. A política anti-drogas dos Estados Unidos está criando uma geração inteira de homens e mulheres, de origem humilde, cuja preparação principal para a vida tem sido a violência de uma prisão.

Legalizar para regulamentar

Remover esses malefícios traria ainda outro benefício. Exatamente porque a comercialização de drogas é ilegal, ela não pode ser regulamentada. As leis não podem discriminar entre o consumo por adultos ou crianças. Os governos não podem determinar padrões mínimos de qualidade para a cocaína; ou educar os asmáticos para que evitem o ecstasy; ou exigir que os distribuidores assumam responsabilidade pela forma de venda dos seus produtos. Com o álcool e o tabaco essas restrições são possíveis; com as drogas, não. Isso aumenta o perigo para os usuários, especialmente os jovens e desinformados. A ilegalidade faz com que a potencia das drogas seja elevada; já que é arriscado comprar uma dose, é melhor que ela seja a mais forte possível. Da mesma forma, a proibição da venda de álcool nos Estados Unidos, nos anos 20, levou a uma queda no consumo de cerveja, mas a um aumento no consumo de uísque.

Se aceitarmos os argumentos pela legalização, como proceder ? Quando, no século 18, um poderoso tóxico foi descoberto, o impacto foi desastroso: foram precisos anos de educação até que o gin deixasse de ser uma ameaça à sociedade. Essa é uma boa razão para avançar devagar: levará tempo para que sejam desenvolvidas convenções sociais que regulem o uso de drogas. Um século de ilegalidade nos impediu de dispor das informações necessárias a uma boa regulamentação. É difícil realizar-se pesquisas acadêmicas imparciais. Assim, ninguém sabe com certeza como a demanda pelas drogas vai reagir a preços menores, e o conhecimento sobre os efeitos da maioria das drogas é vago

E como seria a distribuição das drogas, no caso da legalização ? A possibilidade de encontrar heroína nas prateleiras de supermercados inspira terror em muitas pessoas, e isso é compreensível. Da mesma forma que as drogas legais são encontradas em diferentes formas e locais – cafeína em qualquer bar, álcool apenas para maiores de idade, Prozac com receita médica – as drogas que são agora ilegais poderiam ser, um dia, distribuídas de formas diferentes, de acordo com seus potenciais efeitos negativos. Países diferentes poderiam experimentar formas diversas: atualmente muitos deles estão presos por um acordo das Nações Unidas que impede ainda que mínimos passos em direção à liberalização.

Legalizar não será fácil. O consumo de drogas envolve riscos, e as sociedades são cada vez mais aversas a riscos. Mas o papel dos governos deveria ser o de impedir que usuários de drogas descontrolados prejudiquem outras pessoas – roubando ou dirigindo drogados, por exemplo – e o de regular o mercado para garantir uma qualidade mínima e uma distribuição segura. A primeira tarefa é difícil se os responsáveis pela segurança publica estão preocupados em impedir todo e qualquer uso de drogas; a segunda tarefa é impossível enquanto as drogas forem ilegais. A legalização é a melhor garantia de que o uso de drogas não será mais perigoso do que beber ou fumar cigarros. E, da mesma forma que os países toleram esses dois vícios, deveriam também tolerar a venda e o consumo de drogas.